Por Wilson Alves-Bezerra na Revista Cult | 03/04/2020
A poeta Alfonsina Storni (1892-1938) é dessas figuras fundamentais que acabaram pouco circulando no Brasil e nunca foram traduzidas em livro por aqui. Nascida no cantão Ticino, ao sul da Suíça, onde se fala italiano, seus pais migraram com ela para a Argentina em 1896, quando tinha quatro anos. Antes, Paulina e Alfonso, os pais, já haviam passado uma temporada na província de San Juan, perto da cordilheira, aonde os irmãos de Alfonso haviam ido para instalar uma fábrica de gelo, água com gás e cerveja. A cerveja Los Alpes teve, por alguns anos, relativo sucesso na região. Alfonso, no entanto, não era propriamente um homem empreendedor: de uma família de comerciantes, destoava, era dado ao recolhimento e estava deprimido.
Na tentativa de recuperar o casamento, Alfonso e família viviam se mudando de lugar. Entre as idas e vindas do pai, que depois da indústria se dedicou, já empobrecido ao Café Suíço, em Rosário, na Argentina, e as tentativas da mãe, professora e costureira, Alfonsina cresceu falando três línguas: seu italiano materno, o espanhol do novo país e o francês, língua de cultura. Aos 16 a menina ficou órfã e foi trabalhar como operária numa fábrica de chapéus. Lá conheceu organizações sindicais, movimentos feministas e anarquistas. Em seguida, incentivada pela mãe, ficou em turnê por um ano viajando com uma companhia de teatro, como atriz. Sem suportar o assédio dos homens, retornou à casa da mãe e decidiu tornar-se normalista na escola recém-aberta.
Já professora rural e envolvida afetivamente com um político de Rosário, Alfonsina engravidou. Decidiu assumir sozinha a maternidade e rumou a Buenos Aires, cidade grande na qual poderia ser mãe solteira, com algo menos de dificuldades. Nesse período de formação, estavam dadas as bases da formação intelectual de Alfonsina: as línguas e as leituras que adquirira com a família, a experiência com atriz, a frequentação do mundo proletário e, agora, a solidão da maternidade independente.
Alfonsina conseguiu um emprego de “correspondente psicológica”, algo entre assessoria comercial e de marketing, numa pequena empresa de óleos e azeites, na qual respondia cartas de clientes e os estimulava a comprar mais. É esse momento de sua vida que a própria poeta rememora como o instante em que escreveu seu primeiro livro de poemas:
“Aos 19 anos estou encerrada em um escritório; me acalanta uma canção de teclas; as divisórias de madeira se erguem como diques para além da minha cabeça; barras de gelo refrigeram o ar às minhas costas; o sol passar pelo telhado mas não posso vê-lo; baforadas de asfalto quente entram pelos vãos e a campainha do bonde chama ao longe. Cravada na minha cadeira, ao lado de um horrível aparelho para imprimir discos, ditando ordens e correspondências para a datilógrafa, escrevo meu primeiro livro de versos. Deus te livre, meu amigo, de A inquietude do roseiral…! Mas eu o escrevi para não morrer.” (Entre um par de malas meio abertas e os ponteiros do relógio, 1938)
Eis o início da carreira literária de Alfonsina Storni, que pouco a pouco foi se integrando aos grupos culturais hegemônicos da cidade de Buenos Aires, com o da revista Nosotros, até então apenas composto por homens, nos quais conquistou respeito dos seus pares. O discurso de falsa humildade do trecho acima foi comum em Alfonsina, que chegou a publicar uma série de aforismos, à maneira de Baudelaire, sob o título Diário de uma ignorante.
Tal estratégia, que Josefina Ludmer (1985) chamou de “artimanhas do fraco”, foi fundamental para sua sobrevivência intelectual e artística numa sociedade patriarcal: em sua falsa humildade dava mostras claras de todo seu engenho. Ao mesmo tempo, rendeu-lhe uma obra lírica singularíssima, com influências da poesia do fim do século dezenove, de autores como o nicaraguense Rubén Darío (1867-1916) e o italiano Gabriele D’Annunzio (1863-1938), além de todo o malditismo de Charles Baudelaire, que vez por outra vem lhe sujar os versos. O eu lírico de Alfonsina é feminino, do primeiro ao último verso de sua obra, e a perspectiva que nele adota é – não raro – sensual ou demolidora. Com obra tão potente, Storni apresentou-se com desenvoltura em teatros, balneários, bares e sindicatos, conquistando um público bastante diverso ao longo dos anos.
Da mesma forma, a exposição do corpo e do desejo tal como aparece em sua obra, gerou o silêncio reservado de contemporâneos seus, como o poeta argentino Leopoldo Lugones, que a ignorava solenemente, muxoxos de Jorge Luis Borges, que se referiu à sua obra pejorativamente nas páginas da revista Proa, em 1925, como “imprecisões e gritarias de comadre que costuma nos oferecer a Storni”. No Brasil, recebeu, em 1921, uma resenha elogiosa porém vaga de Monteiro Lobato na Revista do Brasil, com adjetivos positivos mas sem ocupar em tomar-lhe os versos.
Tal tendência de tratar pejorativamente a obra de Alfonsina Storni chega até tempos recentes. A socióloga Beatriz Sarlo, num texto introdutório à edição suíça, em italiano, dos Poemas de amor, renova o discurso machista de ataque à poeta, sem renovar argumentos:
“Alfonsina é cafona porque não sabe ler nem escrever de outro modo. (…) Como fenômeno sócio-cultural Alfonsina é isso. Não escreve assim só porque é mulher, e sim por sua falta de cultura a respeito das tendências novas da cultura letrada/ por seu ‘mau’ gosto, se se pensar nas modalidades do gosto que se impunham na década de 20. Sua cafonice está inscrita e quase predestinada em seus anos de formação e no lugar que ela ocupa no campo intelectual, mesmo com o seu sucesso.”, escreveu no texto “Alfonsina: reconstrucción de una lucha”
É preciso dizer que Storni, ao longo de sua obra, escreve de muitos modos, por distintas escolhas estéticas, e não por falta de escolha: escreveu e publicou um livro de sonetos aos quais ela chamava de anti-sonetos muitos anos antes dos anti-poemas de Nicanor Parra (Máscara e trevo, 1938), um livro de poemas em prosa (Poemas de amor, 1926), tendo exercitado a poesia rimada e os versos brancos desde seu primeiro livro. O potencial de ruptura estética e temática em sua obra levou mais recentemente a autoras como Delfina Muschietti a qualificar Storni como uma das autoras pertences ao que ela chama de “a outra vanguarda”, isto, é um grupo de poetas que ficou à margem dos cânones estéticos do grupo da revista Martín Fierro, capitaneada por Borges e Evar Méndez, que terminaram por ditar o quer era o “novo” e o que deveria permanecer.
A singularidade de Storni, de ser migrante estrangeira na Argentina, de ser mulher num campo cultural então dominado por homens, de se mover com desenvoltura entre a alta sociedade portenha e os meios anarquistas, de não partilhar dos cânones vanguardistas e de se declarar ateia tornaram a recepção de sua obra particularíssima. Se por um lado era reconhecida como uma das maiores poetas em seu meio – foi premiada, publicada em Madri, traduzida ao francês e ao italiano em vida -, por outro era objeto de preconceitos de gênero e classe social. Relê-la no Brasil de 2020 é fundamental, pois nos permite pensá-la duplamente: tanto em relação ao nosso começo de século quanto em relação aos nossos dias atuais, quando a boçalidade generalizada e os preconceitos os mais diversos recrudescem. Alfonsina Storni é para nós, mais que nunca, uma poeta necessária.
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Os poemas aqui reproduzidos fazem parte de uma antologia que está no prelo, Minha alma é uma selva de raízes vivas, a ser lançada pela Iluminuras, e que trará 50 poemas de Alfonsina Storni e um ensaio biográfico que retoma suas raízes suíças e sua condição de migrante na Argentina. O projeto foi realizado com uma bolsa de residência tradutória do programa Coincidencia 2020, da Casa dos Tradutores Looren e da Fundação Pro Helvetia, da Suíça.
A loba
À memória de minha pobre amiga J. C. P.
Porque este foi seu verbo.
“Eu sou como a loba.
Deixei o rebanho
E parti à montanha
Cansada do campo.
Eu tenho um filho fruto do amor, amor sem lei
ser como as outras não quero, gente que nasceu para ser gado,
Cabisbaixo, arrastando arado; levo erguida a cabeça
É com as mãos que eu afasto o capim.
Olha como riem, como me apontam
Só porque eu falo: (as ovelhinhas balem
Porque sentem que a loba invadiu o curral
E sabem que as lobas vêm do matagal).
Pobrezinhas e mansas ovelhas do rebanho!
Não tenham medo da loba, ela não lhes fará nenhum mal.
Mas também não riam, os dentes dela são finos
E da selva trazem a arte dos manejos felinos!
Ela não roubará vocês do pastor, por favor,
Eu sei que alguém disse e vocês acreditaram,
Mas não tem porquê, essa loba não rouba,
seus dentes apenas matam quando devoram.
Ela entrou no curral porque sim, porque gosta
De ver como ao chegar o rebanho todo se acossa,
e disfarça com um riso a superfície do medo
Sugerindo com esgares um estranho ardor …
Vão, se puderem, ficar de frente com a loba
E roubar dela o filhote. Mas vão sozinhas, não podem?
Nem escondidas no bando nem acudindo ao pastor.
Vão sozinhas! Vamos ver quem afronta o pavor!
Ovelhinhas, mostrem os dentes! Que pequeninos!
Não conseguem, coitadas, caminhar sem os donos
Pela montanha escarpada, porque se a onça à espreita
der o bote, não tem defesa, vocês morrem-lhe à boca.
Eu sou como a loba. Ando sozinha e dou risada
Do rebanho. Não preciso de nada. Quem me sustenta sou eu.
Onde quer que for, pois tenho uma mão que é hábil,
Um cérebro ágil e não deixo por menos.
Aquela que puder, que me siga.
Eu já estou de pé, diante do inimigo,
A vida, e não tenho medo de seu ataque final
Porque trago sempre comigo meu punhal.
O filho na frente, eu em seguida e depois… o que vier!
Quem me chamar primeiro para a briga, venha se puder.
Às vezes me iludo com uma semente de amor
Que eu sei impedir que floresça antes do amanhecer.
Eu sou como a loba.
Deixei o rebanho
E parti à montanha
Cansada do campo.”
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Capricho
Penetre-me os olhos, surpreende-me a boca,
Agarre forte com suas mãos esta cabeça louca,
Dê-me de beber veneno, o veneno maldito
Que lhe lambe os lábios apesar de inofensivo.
Mas não me pergunte, não me pergunte nada
De por quê chorei na noite passada;
Nós mulheres choramos sem saber o motivo:
Perguntar-se do choro é interrogar o infinito.
Logo se vê que dentro temos um mar oculto
Um mar um pouco tolo, bestamente absoluto,
Que nos sobe aos olhos com frequência
Que conduzimos com imprecisa ciência.
Não me pergunte, amado, você deve suspeitar
Na noite passada não estava calmo o mar.
É tudo. Tempestades que o vento traz e leva
Vento vadio que novas costas navega.
Sim, tolas borboletas no jardim de janeiro
Nosso interior é todo um vazio pleno.
Luz de cristais, fruto de carnavais
Decorado de escamas de serpentes fatais.
Somos assim, você sabe. O poeta falou:
Mobilidade absoluta de inconsciente sedutor,
Desejamos e saboreamos o mel de cada taça
E na cabeça ainda temos um pouco brasa.
Bem, não, não me pergunte. É coisa de mulher,
Capricho, meu querido, capricho deve ser.
Oh, me deixe rir… Não vê que a tarde é bonita?
Manche-se logo de sangue nessa rosa infinita.
***
Homenzinho miúdo
Homenzinho miúdo, homenzinho miúdo,
Solta o seu canarinho que ele quer voar…
Eu sou o canarinho, homenzinho miúdo,
Me deixa pular.
Estive na sua gaiolinha, homenzinho miúdo,
homenzinho miúdo, mas que gaiola você me dá,
digo miúdo porque você não me entende,
nem nunca me entenderá.
Nem eu também lhe entendo, mas enquanto isso
abre logo esta gaiola, que eu quero escapar;
homenzinho miúdo, eu te amei por meia hora,
não me peça mais.
Wilson Alves-Bezerra é poeta, escritor e tradutor . Doutor em Literatura Comparada pela UERJ, traduziu obras de Horacio Quiroga e Luis Gusmán
Publicado na Revista Cult
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