Faz muito tempo, você veio viver entre nós e falava como um fantasma.1
Aos poucos, você foi aprendendo a imitar minha língua e a rir conosco. Nós éramos jovens, e no começo você não me conhecia. Nossos pensamentos e nossas vidas são diferentes, porque você é filho dessa outra gente, que chamamos de napë.2 Seus professores não o haviam ensinado a sonhar, como nós fazemos. Apesar disso, você veio até mim e se tornou meu amigo. Você ficou do meu lado e, mais tarde, quis conhecer os dizeres dos xapiri, que na sua língua vocês chamam de espíritos.3 Então, entreguei a você minhas palavras e lhe pedi para levá-las longe, para serem conhecidas pelos brancos, que não sabem nada sobre nós. Ficamos muito tempo sentados, falando, em minha casa, apesar das picadas das mutucas e piuns. Poucos são os brancos que escutaram nossa fala desse modo. Assim, eu lhe dei meu histórico, para você responder aos que se perguntam o que pensam os habitantes da floresta. Antigamente, nossos maiores4 não contavam nenhuma dessas coisas, porque sabiam que os brancos não entendiam sua língua. Por isso minha fala será algo de novo, para aqueles que a quiserem escutar.
Mais tarde, eu disse a você: “Se quiser pegar minhas palavras, não as destrua. São as palavras de Omama5 e dos xapiri. Desenhe-as primeiro em peles de imagens,6 depois olhe sempre para elas. Você vai pensar: “Haixopë! É essa mesmo a história dos espíritos!”. E, mais tarde, dirá a seus filhos: “Estas palavras escritas são as de um Yanomami, que há muito tempo me contou como ele virou espírito e de que modo aprendeu a falar para defender a sua floresta”. Depois, quando essas fitas em que a sombra das minhas palavras está presa ficarem imprestáveis, não as jogue fora.7 Você só vai poder queimá-las quando forem muito velhas e minhas falas tiverem já há muito tempo sido tornadas desenhos que os brancos podem olhar. Inaha tha? Está bem?
Como eu, você ficou mais experiente com a idade. Você desenhou e fixou essas palavras em peles de papel, como pedi. Elas partiram, afastaram-se de mim. Agora desejo que elas se dividam e se espalhem bem longe, para serem realmente ouvidas. Eu lhe ensinei essas coisas para que você as transmita aos seus; aos seus mais anciãos, aos seus pais e sogros, aos seus irmãos e cunhados, às mulheres que você chama de esposas, aos rapazes que irão chamá-lo de sogro. Se lhe perguntarem: “Como você aprendeu essas coisas?”, você responderá: “Morei muito tempo nas casas dos Yanomami, comendo sua comida. Foi assim que, aos poucos, sua língua pegou em mim. Então, eles me confiaram suas palavras, porque lhes dói o fato de os brancos serem tão ignorantes a seu respeito”.
Os brancos não pensam muito adiante no futuro. Sempre estão preocupados demais com as coisas do momento. É por isso que eu gostaria que eles ouvissem minhas palavras através dos desenhos que você fez delas; para que penetrem em suas mentes. Gostaria que, após tê-las compreendido, dissessem a si mesmos: “Os Yanomami são gente diferente de nós, e no entanto suas palavras são retas e claras. Agora entendemos o que eles pensam. São palavras verdadeiras! A floresta deles é bela e silenciosa. Eles ali foram criados e vivem sem preocupação desde o primeiro tempo. O pensamento deles segue caminhos outros que o da mercadoria. Eles querem viver como lhes apraz. Seu costume é diferente. Não têm peles de imagens, mas conhecem os espíritos xapiri e seus cantos. Querem defender sua terra porque desejam continuar vivendo nela como antigamente. Assim seja! Se eles não a protegerem, seus filhos não terão lugar para viver felizes. Vão pensar que a seus pais de fato faltava inteligência, já que só terão deixado para eles uma terra nua e queimada, impregnada de fumaças de epidemia e cortada por rios de águas sujas!”.
Gostaria que os brancos parassem de pensar que nossa floresta é morta e que ela foi posta lá à toa. Quero fazê-los escutar a voz dos xapiri, que ali brincam sem parar, dançando sobre seus espelhos resplandecentes. Quem sabe assim eles queiram defendê-la conosco? Quero também que os filhos e filhas deles entendam nossas palavras e fiquem amigos dos nossos, para que não cresçam na ignorância. Porque se a floresta for completamente devastada, nunca mais vai nascer outra. Descendo desses habitantes da terra das nascentes dos rios, filhos e genros de Omama. São as palavras dele, e as dos xapiri, surgidas no tempo do sonho, que desejo oferecer aqui aos brancos. Nossos antepassados as possuíam desde o primeiro tempo. Depois, quando chegou a minha vez de me tornar xamã, a imagem de Omama as colocou em meu peito. Desde então, meu pensamento vai de uma para outra, em todas as direções; elas aumentam em mim sem fim. Assim é. Meu único professor foi Omama. São as palavras dele, vindas dos meus maiores, que me tornaram mais inteligente. Minhas palavras não têm outra origem. As dos brancos são bem diferentes. Eles são engenhosos, é verdade, mas carecem muito de sabedoria.
Eu não tenho velhos livros como eles, nos quais estão desenhadas as histórias dos meus antepassados.8 As palavras dos xapiri estão gravadas no meu pensamento, no mais fundo de mim. São as palavras de Omama. São muito antigas, mas os xamãs as renovam o tempo todo. Desde sempre, elas vêm protegendo a floresta e seus habitantes. Agora é minha vez de possuí-las. Mais tarde, elas entrarão na mente de meus filhos e genros, e depois, na dos filhos e genros deles. Então será a vez deles de fazê-las novas. Isso vai continuar pelos tempos afora, para sempre. Dessa forma, elas jamais desaparecerão. Ficarão sempre no nosso pensamento, mesmo que os brancos joguem fora as peles de papel deste livro em que elas estão agora desenhadas; mesmo que os missionários, que nós chamamos de “gente de Teosi”,9 não parem de dizer que são mentiras. Não poderão ser destruídas pela água ou pelo fogo. Não envelhecerão como as que ficam coladas em peles de imagens tiradas de árvores mortas. Muito tempo depois de eu já ter deixado de existir, elas continuarão tão novas e fortes como agora. São essas palavras que pedi para você fixar nesse papel, para dá-las aos brancos que quiserem conhecer seu desenho.
Quem sabe assim eles finalmente darão ouvidos ao que dizem os habitantes da floresta, e começarão a pensar com mais retidão a seu respeito?
NOTAS
(1) Ter “língua de fantasma” (aka porepë) significa falar uma língua não yanomami, expressar-se desajeitadamente, gaguejar, emitir sons inarticulados ou ser mudo.
(2) A palavra napë (pl. pë) significa “forasteiro, inimigo”.
(3) Todo ente possui uma “imagem” (utupë a, pl. utupa pë) do tempo das origens, que os xamãs podem “chamar”, “fazer descer” e “fazer dançar” enquanto “espírito auxiliar” (xapiri a). Esses seres-imagens (“espíritos”) primordiais são descritos como humanoides minúsculos paramentados com ornamentos e pinturas corporais extremamente luminosos e coloridos. Entre os Yanomami orientais, o nome desses espíritos (pl. xapiri pë) designa também os xamãs (xapiri thë pë). Praticar o xamanismo é xapirimuu, “agir em espírito”, tornar-se xamã é xapiripruu, “tornar-se espírito”. O transe xamânico, consequentemente, põe em cena uma
identificação do xamã com os “espíritos auxiliares” por ele convocados.
(4) A expressão pata thë pë designa os líderes de facção ou de grupos locais (os “grandes homens”) ou, de modo geral, os “anciãos”.
(5) Omama é o demiurgo da mitologia yanomami.
(6) Os Yanomami chamam as páginas escritas e, de modo mais geral, os documentos impressos contendo ilustrações (revistas, livros, jornais) de utupa siki (“peles de imagens”). Para o papel, utilizam a expressão papeo siki, “peles de papel”. Referem-se à escrita com termos que descrevem certos motivos de sua pintura corporal: oni (séries de traços curtos), turu (conjunto de pontos grossos) e yãikano (sinusoides). Escrever é, assim, “desenhar traços”, “desenhar pontos” ou “desenhar sinusoides”, e a escrita, tRë ã oni, é um “desenho de palavras”.
(7) As gravações de onde nasceu este livro foram feitas num gravador de fitas cassete. A expressão thë ã utupë, “imagem, sombra das palavras”, refere-se à gravação sonora.
(8) Os Yanomami orientais designam seus antigos por três termos genéricos: pata thë pë (os “grandes homens”, os “anciãos”), xoae kiki (o “conjunto dos avós”, os antepassados históricos, os maiores) e në pata pë (os ancestrais míticos).
(9) Teosi vem do português “Deus”. Essa “gente de “Teosi” são os missionários evangélicos fundamentalistas da organização americana New Tribes Mission (NTM), que fizeram sua primeira visita ao alto rio Toototobi (Weyahana u) em 1958, quando Davi Kopenawa devia ter dois ou três anos. A NTM foi fundada nos Estados
Unidos, em 1942, por Paul W. Fleming, e tem sede em Sanford, Flórida; é conhecida no Brasil como Missão Novas Tribos (MNTB).
Excerto de “A Queda do Céu, Palavras de um Xamã Yanomami” de Davi Kopenawa e Bruce Albert publicado pela Companhia das Letras | Pg. 63-66, “Palavras dadas”
DAVI KOPENAWA nasceu por volta de 1956, em Marakana, grande casa comunal situada na floresta tropical de piemonte do alto rio Toototobi, no norte do estado do Amazonas, próximo à fronteira com a Venezuela. Desde 2004, é presidente fundador da associação Hutukara, que representa a maioria dos Yanomami no Brasil. Em 2008, recebeu uma menção de honra especial do prestigioso prêmio Bartolomé de las Casas, concedido pelo governo espanhol pela defesa dos direitos dos povos autóctones das Américas e, em 2009, foi condecorado com a Ordem do Mérito do Ministério da Cultura brasileiro.